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Emicida: Eminência Libre em AmarElo

Jeff Ferreira
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Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, se tornou um dos rappers de maior destaque na cena, além de empreender na Lab Fantasma, projeto que transita entre a moda e a música e segue como oportunidade de emprego para quebrada. Em meio a isso a diversos singles lançados desde o disco Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, incluindo a empreitada Língua Franca, de 2017, em parceria com Rael, Valete e Capicua, o MC presenteia a música brasileira com o álbum AmarElo.

Quarto trabalho de estúdio, o lançamento reflete o momento pessoal de Leandro que se cruza com o Brasil do Emicida ao passo que fala de amor, também fala sobre as mazelas que sempre acompanhou o povo da periferia, principalmente aqueles de pele escura. Em 2019 o rapper fala dos mesmos assuntos que tratava em sua mixtape de estreia em 2009, Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Cheguei Longe (clique aqui para conferir o review faixa a faixa), o que muda é a modernidade das batidas, evolução da produção, feats e a forma de abordar os temas.

Para começar a contar a história deste disco, vamos logo para o final, na faixa “Libre”, o rapper encerra AmarElo como o título sugere “livre”, sem amarras, a começar pelo beat que mescla música latina, trap e miami base, tudo bem dosado com versos em inglês e iorubá cantados pelo duo Ibeyi, as irmãs gêmeas Lisa-Kaindé e Naomi Díaz, de origem francesa e com DNA do lendário Buena Vista Social Club, já que são filhas do músico cubano Miguel Anga Díaz, com sotaque carregado arriscam palavras em “brasileiro”. E “se o gueto acordar, o resto que que se foda” é a mensagem central da música, que não se prende a estética de gênero musical especifico e nem é enquadrado em um único idioma, exatamente livre, como a carreira de Emicida e seu processo criativo para conceber um álbum igualmente livre.

"So fella, so fella, so fella
This beat is contagious
Sequela, sequela, sequela
To freedom forever like
Mandela, mandela, mandela
There's no discussion
Favela, favela, favela"

AmarElo começa com a faixa “Principia” em meio ao cantarolar das Pastoras do Rosário, grupo formado por mulheres negras da Penha, o bumbo e caixa se apresentam, lembrando a todos que se trata de um disco de rap, mesmo com os teclados, percussão e levada cantada que contribuem para que os desavisados rotulem a faixa de “pop”. A música contém participação de da sambista Fabiana Cozza e do Pastor, progressista, Henrique Vieira, e todos esses elementos se juntam para falar de amor, mas não no singular e sim no plural: como amar depois de tudo que aconteceu nesse país? A música pede o renascimento da humanidade enquanto que “um sorriso ainda é a língua que todos entendem”.

"Tipo um girassol, meu olho busca o sol
Mano, crer que o ódio é solução
É ser sommelier de anzol
Barco à deriva sem farol
Nem sinal de aurora boreal
Minha voz corta a noite igual um rouxinol
No foco de pôr o amor no rol"

Em “Ordem Natural das Coisas”, a ode ao trabalhador e todos que se levantam antes do sol se levantar, a correria diária, os dilemas e sonhos e a necessidade de voltar vivo e são para o barraco. Para essa track, Emicida conta com a participação da MC Tha e com instrumental inspirador que repassa a atmosfera de paz, esperança e liberdade.

"Anunciado no latir dos cães, no cantar dos galos

Na calma das mães, que quer o rebento cem por cento
E diz: "leva o documento, Sam"
Na São Paulo das manhã que tem lá seus Vietnã
Na vela que o vento apaga, afaga quando passa
A brasa dorme fria e só quem dança é a fumaça
Orvalho é o pranto dessas planta no sereno
A lua já tá no Japão, como esse mundo é pequeno"


A guitarra suingada e os claps colocam o ritmo na poesia de “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”, que continua a contar a história sobre simplicidade, amor e valorização das alegrias que, mesmo pequeninas, salvam o dia. Como num samba de roda, Emicida traz um refrão que gruda e inspira, daqueles para todo mundo cantar junto batendo palmas, ao mesmo tempo que serve como um mantra para enfrentar a fase braba. O final da faixa ainda traz de bônus uma grata surpresa, o humorista Thiago Ventura, o comediante da quebrada, que relata um causo, uma fita daquelas que é foda, mas depois nós se lembramos e damos risada.

"É um sábado de paz onde se dorme mais

O gol da virada quase que nós rebaixa
Emendar um feriado nesses litorais
Encontrar uma Tupperware que a tampa ainda encaixa (Oh glória!)
Mais cedo brotou alecrim em segredo
Tava com jeito que ia dar capim
Ela reclama do azedo, recolhe os brinquedo
Triunfo hoje pra mim é o azul no boletim"


Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo)”, e o amigo de Leandro nessa faixa é lendário Zeca Pagodinho, numa pegada que não é um samba rap, e nem um rap samba, um beat diferente que faz crossover dos dois estilos sem que nenhum perca a identidade, Como o nome revela, a letra fala sobre amizade, o oásis nas piores fases, em flow cantado com a malandragem de Bezerra e a humildade de Jair Rodrigues, além de uma homenagem a Wilson das Neves (Só morre quem não presta), é samba de bombeta e com os graves do bumbo, boombap com cavaquinho e cuíca no encontro entre Xerém e o Jardim Fontalis.

"O amigo é um mago do meigo abraço

É mega afago, abrigo em laço
Oásis nas piores fases quando some o chão e as bases
Quando tudo vai pro espaço, é isso
O amigo é um mago do meigo abraço
É mega afago, abrigo em laço
Oásis nas piores fases quando some o chão e as bases
Quando tudo vai pro espaço"


Há quem diga que AmarElo não é um disco político, e é nesse momento que Emicida mostra a “Paisagem” desse distópico Brasil de 2019: "cheira pólvora, frio de mármore, vê que agora quantas arvores? Condecora nossos raptores, nos arredores tudo já pertence aos roedores, é a hora que o vermelho colore o folclore”, a chegada ao poder de um grupo que representa o oposto dos valores da cultura Hip Hop é extremamente preocupante, “ansiedade corrói como ferrugem”, e o panorama insiste em melhorar, “com sorte talvez piore”, o beat tenso marcado pela guitarra com riffs precisos, a letra fala de paz, que tudo está em paz... A paz de um cemitério, já que os motivos são mais que suficientes e legítimos para um levante antifa em busca da cabeça do presidente, mas a polarização das redes e o social da vida real têm que coexistir e para o cidadão comum, que já perdeu empregos e amizades por convicções politicas, e hoje sente o peso do mundo nas costas, sem perspectiva, tem que buscar maneiras de observar a paisagem, e se manter em paz, de espirito e de saúde mental.

"O peso dos dias nas costas brindamos com fel
Num silêncio que permite ouvir as nuvem raspar o céu
Sem faróis nos faróis, descendentes de faraós ao léu
E a cena triste insiste em te dar um papel
Em algum lugar entre a rua e a minha alma
Estampido e a libido trepa entre gritos de calma
Bem louco de like e brisa
Que a rede social dá o que nós quer enquanto rouba o que nós precisa"

Na faixa a seguir, Emicida dá uma escapada para “Canélia, Iguape e Ilha Cumprida”, locais onde encontra a paz, e traz versos “do fundo do coração, mais profundo canto do seu interior, para o mundo em decomposição, escreve como quem manda cartas de amor”, cartas de amor para todo mundo, como sugere uma das filhas de Leandro. O MC homicida das batalhas de freestyle, campeão de improvisação em diversas rinhas, se despe da pose de mau, e traz um rap pique “Amoras” pensado realmente como uma carta de amor do “trabalhador interprete” para suas filhas e para as gerações futuras, resgatando um dos valores do rap dos anos 90, a família!

"Crianças, risos e janelas
Namoradeiras, tranças, chitas amarelasO vermelho das telhas, o luzir da centelhaTe faz sentir como dentro de uma telaA esperança pinta em aquarelaChiadeira de rádio, TVs e novelasO passeio das abelhas, o concordar das ovelhas nas orelhasE a vida concorda de tabela"

Na faixa sete, Drik Barbosa, cria das batalhas de freestyle, assim como Leandro, e também artista do selo da Lab Fantasma, é Bonnie enquanto que Emicida é Clyde, em letra que fala de uma "sintonia monstra" de um casal que almeja um dia virar notícia. “9vinha” é a história de um romance marginal, a relação de um casal cujo o relacionamento também envolve o revolver, e alheios as mazelas se excitam enquanto são cúmplices de uma escolha que fizeram, cujo o final é sempre trágico. Apesar do tempero ser a vida bandida, a música fala sobre união conjugal, superar as adversidades e crescimento conjunto, tendo como plano de fundo o crime.

"Número bom, tamanho perfeito pra mim

Que as outra era pesada, B.O, flagrante
Ela não, bem cuidada, ela era brilhante
Uma na agulha, não perde a linha
Prendada, ligeira tipo as tiazinha lavadeira
Explosiva de cuspir fogo
Quem viu num queria ver duas vez, eu fui com ela de novo"


Rumando para o final do álbum, a música “Ismália” vem com a principal bandeira do Emicida, a luta contra o racismo e a denúncia em forma de versos, linhas que protestam e exemplificam o quão assassino e covarde é o estado brasileiro, isso desde 1500, mas que se acentua nos tempos modernos. A violência policial segue numa crescente, tendo como objetivo a jovens pretos e de periferia, como um Emicida antes do triunfo, “existe a pele alva, e a pele alvo”. Com participação de Larissa Luz e da atriz Fernanda Montenegro, a música também fala sobre a liberdade e sobre como os pretos não podem ter paz, mesmo buscando a paz e pregando o amor, “cuidado, não voa tão perto do sol, eles não aguentam te ver livre, imagina te ver rei? O abutre quer te ver de algema”.

"Primeiro 'cê sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles
Nega o deus deles, ofende, separa eles
Se algum sonho ousa correr, 'cê para ele
E manda eles debater com a bala que vara eles, mano
Infelizmente onde se sente o sol mais quente
O lacre ainda tá presente só no caixão dos adolescente
Quis ser estrela e virou medalha num boçal
Que coincidentemente tem a cor que matou seu ancestral"

Em “Eminência Parda”, single que já havia sido adiantado em vídeo clipe, com participação de Jé Santiago, Papillon e Dona Onete, o beat é de trap, com atmosfera densa, e flow rasgado de Emicida, com tom enfurecido, destoando das primeiras faixas do álbum, o que é necessário, já que novamente o tema é o racismo, porém dessa vez mostrando a ascensão e conquista dos negros, que “escaparam da morte e agora sabem para onde vão”, o rap, e seus subgêneros, serviram, ao longo dos tempos, como um megafone que denunciava, depois passou a ser um pé de cabra que arrombou várias portas por onde diversos artistas entraram e agora é uma HK na resistência, onde está sendo possível colher os frutos dessa batalha:

"Meto terno por diversão (Diversão)
É subalterno ou subversão? (Subversão)
Tudo era inferno, eu fiz inversão (Inversão)
A meta é o eterno, a imensidão (Ahn)
Como abelhas se acumulam sob a telha
Eu pastoreio a negra ovelha que vagou dispersa
Polinização pauta a conversa
Até que nos chamem de colonização reversa"

Video clipe de "Eminência Parda" - Emicida, Dona Odete, Jé Santiago e Papillon

A penúltima música é a que dá nome ao álbum, “AmarElo”, a qual também já havia sido liberada anteriormente em vídeo clipe, e traz a participação da Majur e da Pablo Vittar, a canção fala sobre a saúde mental, é uma injeção de ânimos, em cima dos BPMs acelerados, para ajudar minas, monas e manos a superarem a depressão e se afastar dos pensamentos negativos. Amarelo é a cor destinada para as campanhas de prevenção ao suicídio, "não é um hit é um pedido de socorro". O sample do poeta de Sobral, o eterno Belchior, ajuda a contextualizar o clima de superação: “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, esse ano eu não morro”, é o sol que invade a sala, e Belchior tinha razão, como reforça os versos das participações: “Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes”, a música é um cachoalhão de autoestima e uma conversa da periferia para a periferia: “Aí maloqueiro, aí maloqueira, levanta essa cabeça, enxuga essas lagrimas, respira fundo e volta para o ringue, você vai sair dessa prisão, você vai atrás desse diploma, com a fúria da beleza do sol, entendeu? Faz isso por nós, faz essa por nós, te vejo no pódio!

"Eu sonho mais alto que drones

Combustível do meu tipo? A fome
Pra arregaçar como um ciclone (Entendeu?)
Pra que amanhã não seja só um ontem com um novo nome
O abutre ronda, ansioso pela queda (Sem sorte)
Findo mágoa, mano, sou mais que essa merda (Bem mais)
Corpo, mente, alma, um tipo Ayurveda
Estilo água, eu corro no meio das pedra
Na trama, tudo os drama turvo, eu sou um dramaturgo
Conclama a se afastar da lama, enquanto inflama o mundo"

Vídeo clipe de "AmarElo" - Emicida, Majur e Pablo Vittar


E fechando o disco “Libre”... De maneira livre Emicida falou de tudo o que incomoda aqueles que nos querem ver pra baixo, aqueles que roubaram a nossa paz, a nossa humanidade, nossa capacidade de amar e ser inteligente numa guerra que está longe de acabar, Emicida nos abraça, e diz que tudo vai ficar bem, mesmo com um cenário que traz uma paisagem desoladora, desde que cuidamos uns dos outros, da nossa família, da nossa saúde mental e se mantermos firmes no corre, vamos enfraquecer o inimigo, pois ele não vai ver nossa derrota, vamos voar perto do sol, e se o gueto acordar, o resto que se foda!

Vídeo clipe de "Libre" - Emicida e Ibeyi

Vale falar também da capa de AmarElo, em foto da fotógrafa e ativista Claudia Andujar, e como Emicida explica: "Ter três crianças indígenas na capa, num período em que estão vendo a sua cultura e o seu modo de vida ameaçados, é colocar como se estivessem encarando o Brasil dizendo: 'sério mesmo? vai acontecer tudo de novo?"

Confira o álbum AmarElo no Spotify:

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