A primeira audição pode não agradar, principalmente os ouvidos mais exigentes. No entanto convido o amigo a despir-se de qualquer preconceito sonoro e, para além de beat e flow, escute a história cativante de um sujeito que não é menos Hip Hop do que qualquer outro artista dessa heterogênea e acolhedora cultura. Num palco ainda pouco trilhado pelo Hip Hop, surge um nome: Ivo Mamona, uma figura exótica da cena rap de Goiânia. Sua ingenuidade rendeu-lhe aplausos e uma legião de admiradores, conquistados por sua simplicidade e autenticidade.
O rapper, cujo vídeo “Na Periferia” atingiu a marca de 718 mil visualizações no YouTube (e contando), cativou o público com sua performance direta e despretensiosa. Com rimas simples, mas verdadeiras, Mamona soube transformar seu jeito ingênuo em um símbolo de identidade para a plateia.
“Quero paz na minha área” e versos em homenagem às vítimas das enchentes em Santa Catarina, contrastam com a falta de requinte poético, mas são peças de um quebra-cabeça honesto que Ivo monta em suas músicas. Com uma bicicleta “croisinha” como ícone, ele desenha seu cotidiano e suas raízes, ganhando um lugar especial no coração dos que o assistem.
A trajetória de Ivonildes Moreira da Silva, ou simplesmente Ivo Mamona, remete ao início humilde e à autenticidade que tem como referência a banda Mamonas Assassinas. Fã incondicional do grupo, Mamona, com sua camiseta eternamente em homenagem aos Mamonas, fundiu seu vulgo com a abreviação de seu nome, criando o rótulo que o identifica até hoje.
Seu sucesso na internet se deu sem luxos, filmado no quintal de casa, com amor e simplicidade. “Sou da favela, não tenho dinheiro e quero mostrar quem eu sou”, revelou o rapper em uma das inúmeras entrevistas que cedeu depois que virou um fenômeno da internet. E por falar em rede, foi na primeira grande rede social do Brasil, o finado Orkut, que Ivo Mamona experimentou a fama ao receber diversas mensagens de apoio vindo de todas as partes do Brasil. Quase vinte anos depois e o artista ainda se mantém fiel à sua essência, comprovando a verdade que ecoa em sua música.
E foi com o apoio do público e todo o carinho que Ivo recebeu que o rapper foi levou-o a palcos improváveis, como o Goiânia Noise, que em 2009 havia recém-dedicado um
espaço ao Hip Hop através de uma parceria com a CUFA. Ivo Mamona usou seu suado salário como auxiliar de costureiro e produziu e lançou u álbum promocional (e experimental!). Com suas músicas, o goiano conseguiu transmitir sua mensagem que vai além de palavras simples: ele é um incentivador dos estudos, apesar de ter deixado a escola no segundo ano do ensino médio. Em suas letras, encoraja os jovens a evitar drogas e a buscar conhecimento, usando versos como: “Saia do escuro, venha para a luz / Drogas matam, aceite Jesus”.
Um fato curioso é que Ivo Mamona é evangélico, um cristão presbítero, como se define. Mas nadando contra a correnteza reacionário do pseudo-cristianismo, o rapper é fiel a origem do Hip Hop e se matem à esquerda no espectro político, inclusive sendo candidato a vereancia em Goiânia pelo Partido Comunista do Brasil, o PCdoB.
O rap de quintal de Ivo Mamona, desprovido de luxos, encontra ressonância entre aqueles que reconhecem a autenticidade em cada batida e verso.
Em 2021 Ivo lançou a música e clipe “Pessoa Abençoada”, com produção de Tubarão MB90. No ano seguinte o rapper lançou o single “Pele Preta” que contou com produção de Tubarão MB99 e clipe dirigido Aladdin.
O Submundo do Som bateu um papo com Ivo Mamona e você confere na sequência:
Submundo do Som - A simplicidade e autenticidade das suas músicas atraíram uma legião de fãs. Como você vê essa conexão tão forte entre sua autenticidade e o público que se identifica com suas letras e seu estilo despretensioso?
Ivo Mamona - A conexão é que eu fui assim sincero, sabe? E muitas, sendo sincero, a gente se torna polêmico. Tanto é que os rappers daquele tempo, muitos né?, não todos, mas muitos, me criticavam. Hoje muitos me imitam. Os que me criticavam passaram a me imitar. E assim, eu atrai muitas pessoas que chegava em mim e falavam: "nossa, eu nem curtia rap, passei a curtir rap por causa de você!". Muita gente já chegou assim: "nossa, suas letras, assim, contam as coisas que mexeram comigo, sabe?". Muita gente chegava em mim desse jeito. Então, de certa forma, eu trouxe pessoas que não gostavam de rap para curtir rap. Eu consegui crescer o público do rap, sabe? Minha vizinha, que odiava minhas músicas passou a gostar.
A sinceridade, né? As pessoas viram isso. A sinceridade às vezes nos torna polêmicos. Uns gostam, outros não gostam. Claro que eu não agradei a todos, sabe? Desse jeito. Mas o público que gostou, esses são fiéis.
Submundo do Som - O vídeo "Na Periferia" conquistou uma quantidade significativa de visualizações no YouTube. Como você acredita que sua música e mensagem têm impactado as pessoas que acompanham o seu trabalho?
Ivo Mamona - Na minha música "Na Periferia" eu coloquei muita sinceridade. Porque eu assistia aos videoclipes, principalmente aqueles norte americanos. Passava lá aquele clipe com o pessoal com muito dinheiro, sabe? Jogando notas de dólar para cima, com mulheres, carrão e tudo. E eu mostrei ali que eu sou realista, sabe? O dinheiro que eu tenho é as moedinhas, sabe? Joguei na mesa, não tem nota de dólar, tem as moedinhas. As mulheres mesmo são mulheres normais mesmo, sabe? Mulheres da periferia mesmo, que eu mostrei, sabe? E carro eu não tenho, então eu mostrei que eu tenho uma bicicleta. E foi isso, eu mostrei a realidade do que eu vivo. E com isso as pessoas passaram a curtir minhas músicas. Tanto é que nessa música aí, nessa música, a parte que mais faz sucesso é a parte que eu falo da minha bicicleta croizinha, sabe? Que eu nem imaginava que isso ia impactar tanto as pessoas. E a galera gostou mais da parte que eu falo da croizinha que vou encontrar com as gatinhas, sabe? Desse jeito. E eu nem imaginava, sabe? E a galera passou a gostar. E aonde eu chegava, as pessoas falavam bicicleta croizinha, oh o Ivo Mamona, bicicleta croizinha, e tal. E foi muito top, muito top mesmo.
Submundo do Som - Você mencionou em entrevistas anteriores que é um incentivador dos estudos, apesar de ter deixado a escola no segundo ano do ensino médio. Como você busca transmitir essa mensagem aos jovens através das suas músicas?
Ivo Mamona - Eu não concluí meus estudos, não concluí nem o ensino médio, parei de estudar no segundo ano do segundo grau. E isso atrapalhou muito a minha vida financeira, sabe? Porque tudo que eu fiz no rap, eu fiz da maneira independente. Nunca tive patrocinador, nunca tive empresário, sabe? Foi tudo trabalho, tudo meu esforço mesmo. Eu tive que investir uma parte do meu salário na minha carreira musical, e isso é muito difícil. Então eu acredito que se eu tivesse terminado meus estudos, feito a faculdade, arrumado um emprego melhor, eu poderia ter um salário melhor, e com isso eu ia poder investir mais no meu trabalho, na minha carreira musical, então eu sempre quero passar isso para as pessoas. Não saia da escola, sabe? Estude, conclua o estudo, faça a faculdade. E aí você pode ter uma carreira e não ter tanta dificuldade financeira. Você pode evoluir na sua vida financeira. E eu fiquei um bom tempo com a minha carreira parada, porque eu não tem dinheiro para poder investir.
Submundo do Som - Sua música "Pessoa Abençoada" lançada em 2021 e "Pele Preta" lançada no ano seguinte mostram uma progressão e diversidade em suas composições. Qual é a inspiração por trás dessas novas músicas e como você vê essa evolução na sua carreira?
Ivo Mamona - A música "Pessoa Abençoada", eu trouxe a mensagem para que as pessoas coloquem Deus em primeiro lugar. Por quê? Porque a vida é muito difícil e aí o meu ponto forte é Deus, sabe? O meu socorro é Deus. Eu pensei assim: "vou fazer uma música para as pessoas se manterem de pé mesmo com problemas". Sabe que problema? Todo mundo tem, todo mundo tem problema. Sabe dificuldade? Todo mundo tem, todo mundo enfrenta alguma dificuldade. Então a pessoa tem que se manter de pé mesmo com os problemas e deve colocar Deus em primeiro lugar, vai chegar uma hora que a pessoa vai conseguir vencer. É tipo aquele filme do Rocky Balboa, ele apanha o filme inteiro, mas por se manter de pé, ele consegue vencer. E a vida do ser humano é desse jeito, mesmo a gente apanhando, levando cacetada, levando porrada, a gente consegue vencer se a gente se manter de pé. Pra mim, ficar de pé é buscar força em Deus, Deus dá força para a gente e a gente se mantém de pé e aí conseguimos nos manter de pé.
Já a música "Pele Preta", eu abordo o racismo que sofro desde criança. De piadinhas, que eu tinha que rir para não demonstrar que eu estava sofrendo por dentro, o sorrisinho forçado, mas que por dentro eu estava chorando. E também o racismo explícito, humilhação, que eu já sofri na pele. Antes todo mundo achava que tinha que aceitar, e eu não sabia como agir, e hoje eu sei como agir, então hoje eu não aceito. O pessoal fala que não existe racismo, mas racismo existe. E eu já sofri na pele e ainda sofro, só que hoje eu consigo agir, hoje eu consigo buscar os meus direitos, e quando eu era mais novo eu não sabia disso, eu não sabia que a gente podia lutar contra o racismo. O racismo está tão enraizado que as pessoas acham que é certo, mas não é certo, é errado, então hoje eu sei. Então eu coloquei na música isso, uma parte do que eu sofri desde criança, e hoje eu não aceito mais o racismo.
Submundo do Som - Você é evangélico, mas se mantém fiel à origem do Hip Hop, incluindo ideais políticos de esquerda. Como essa mistura de fé e posicionamento político influencia suas composições e a mensagem que você deseja transmitir?
Ivo Mamona - A minha religião e a minha opinião política, nossa, é muito difícil. Muito difícil mesmo. Porque na minha religião eu sofro preconceito por eu ter opinião política da esquerda e na política da esquerda eu sofro preconceito por eu ser evangélico. Sabe? Todo mundo sabe que a religião evangélica é mais puxada para o lado da direita. Então, só da gente estar apoiando alguém da esquerda que para eles já está errado, já está pecando. E já na política à esquerda, eu já sofri bastante, lá eu sou tachado de machista, moralista, homofóbico, isso, aquilo, sabe? Só porque eu não concordo 100% com algumas práticas. Eu coloquei na minha cabeça que tudo que a gente for fazer na vida, não posso sugar 100% daquilo. Eu tenho que passar um filtro. Quando a gente é obrigado a seguir 100% uma coisa, isso é ditadura. E eu não concordo com a ditadura. Então, é desse modelo. Eu tento sugar o que é bom pra mim, pra comunidade e pra minha vida. Tem coisa na religião evangélica que é doutrina do ser humano, do homem. Mas eles colocam como se fosse de Deus. E tem coisa na esquerda, lá na política, que é coisa que vem da cabeça deles. E eles colocam como se fosse certo. Que se a gente discordar de uma vírgula, pronto, não serve pra eles. E a coisa não é bem assim. Tudo, tudo que a gente for fazer, não pode seguir 100%. Uma coisa é a doutrina de Deus. Outra coisa é a doutrina do homem. Uma coisa é a gente seguir 100% uma regrinha. Outra coisa é a gente ter o direito de discordar de algumas coisas, sim. Então, na política e na minha religião, eu não sigo 100%. Na minha religião eu sigo a Deus. Jesus Cristo veio mesmo porque muita gente estava colocando coisas na cabeça como se fosse doutrina de Deus. E não era, era coisa da cabeça do homem, da cabeça do ser humano. E a mesma coisa lá na política. Muitas coisas lá eu não concordo. Pode me xingar, pode fazer o que quiser. Eu vou apoiar quem eu acho que eu devo apoiar, sabe? Mas eu não estou nem aí para a opinião de ninguém, não. Eu estou vivendo a minha vida hoje assim. Não estou me importando com a opinião dos outros, sabe? Eu ficava muito nisso, me importando muito com a opinião dos outros. Eu não estou nem aí para a opinião de ninguém mais, não. Agora é a minha opinião e pronto, acabou. É desse jeito.
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