O Face da Morte apresenta seu
mais novo trabalho, uma homenagem as raízes do Hip Hop e vem em “Estilo Boombap”.
O clipe foi gravado no Largo da São Bento, berço do Hip Hop paulista e que influenciou
e muito a cena nacional, alguns artistas da velha guarda nosso rap estão ali
presentes, como MP, do Expressão Ativa, e o lendário MC Jack. Uma roda se forma
e capoeiristas e b.boys dançam ao som do bumbo, clap e DJ nos scratches, DJ
esse o multicampeão Erick Jay. Tudo isso em frente ao graffiti de Raquel Brust,
na parede do Colégio de São Bento, o qual homenageia ativistas de lutas
indígena e LGBT, pois além de resgate a essência e grito antifa, o clipe protagonizado
por Aliado G e Mano Ed é inclusivo, já que também traz irmãos em situação de
rua do centro da cidade para participarem do audiovisual.
O clipe começa com um diálogo
entre os irmãos Aliado G e Mano Ed, enquanto assistem a serie espanhola La Casa
de Papel, criada por Álex Pina, em cena que os personagens El Profesor e seu
irmão Berlim catam o hino Bella Ciao, canção antifascista ecoada pelos
Partigiani (saiba mais aqui), e como Aliado G muito
bem pontua: “Tem muita gente que ouve essa música e não tem ideia de que ela é
um hino antifascista. Quando os Partigiani marcharam para tirar Mussolini do
poder, eles invadiram a cidade cantando essa música Bella Ciao, e povo ia para
as janelas, cara, cantar. Muitos iam atrás deles e foi o dia da derrubada do
fascismo eu acho que a gente precisa fazer um rap com essa pegada de
resistência antifascista porque o Brasil tá sobre ameaça do fascismo, te
garanto, mano!”. Mano Ed responde a convocação: “eu acho que temos que fazer um
rap, um boombap, pesado, com DJ, scratch ali, pegada dos anos 90, a cara dos
pioneiros, só que com a cara do Face da Morte, com a nossa cara”.
E assim, bebendo da melodia de
Bella Ciao, o Face da Morte apresenta seu hino de resistência com as marcantes
linhas:
“Eu
sou o rap, estilo boombap,
eu
tenho o bumbo, eu tenho o clap,
eu tenho
o DJ, eu tenho scratch.
Eu
sou do gueto, sei que incomoda
e
os pé na porta enche o peito e grita é ‘Foda, não é moda!’”
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São Bento |
As imagens do clipe nos
transportam de Hortolândia - cidade do interior de São Paulo onde o Face da
Morte surgiu em 1995 – para o Largo da São Bento, onde na segunda metade dos
anos 80 os b.boys se reuniam para a prática do breaking, muitas vezes
perseguidos pela polícia e agentes do metrô pelo “crime” de dançar. Pouco a
pouco a São Bento foi reunindo os demais elementos do Hip Hop, ali surgiram muitos
MC’s que batiam nas latas de lixo para emular o bumbo e clap, DJ’s trocavam
discos e fitas K7 e os grafiteiros informações e fotos de desenhos em vagões de
trem (como leitura completar fica aqui a indicação do livro 30 Anos do Disco
Hip Hop Cultura de Rua – clique aqui - que narra
essa cena inicial e o documentário Nos Tempos da São Bento – clique aqui - , dirigido pelo grande Guilherme
Botelho).
A roda de capoeira é formada por
b.boys, representados pelo Sinistro, pessoas em situação de rua, pilares do rap
nacional, representados por Duck Jam e Nação Hip Hop, Mc Jack, MP, do grupo
Expressão Ativa, Ander Loko e O Revide, além do grupo de capoeira Grupo
Inchuí. E aqui vemos o quão próximo o breaking e a capoeira são, afinal
ambos são esportes e dança de resistência, um originário dos negros e latinos
periféricos do Sounth Bronx dos anos 70, outro provindo da Africa e da luta dos
negros escravizados no Brasil, ambos se encontrando nessa comunhão chamada Hip
Hop.
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Bboy Sinistro |
Logo em seu primeiro verso, “Estilo
Boombap” faz ode as origens do Hip Hop o DJ e o breaking. A cultura se inicia
com os DJ’s, antes de ganhar o nome de Hip Hop, termo cunhado por Afrika
Bambaataa em 1978, tem sua raiz na Jamaica dos anos 60 com os sound systems, e
foi o jamaicano Kool Herc que, com toca-discos encontrados em latas de lixo e
um mixer, realizou festas nos guetos novaiorquinos do Bronx e iniciou toda essa
história. Os DJ’s eram a sensação dessas festas periféricas chamadas de block
party, e foi em uma delas, a de aniversário de sua irmã Cindy Campbell, no dia 11
de agosto de 1973, na Avenida Sedgwick, 1520, que deu start ao que hoje é a
cultura mundial chamada Hip Hop. Muitos que frequentavam as festas de Kool
Herc, e outros DJ’s da época como Grand Master Flash e Afrika Bambaataa, se
sentiam mais livres para dançar na parte instrumental da música, a qual era
criada pelo DJ através de loops em dois discos iguais, essa parte instrumental
criada por loops foi chamada de “break beat” e assim surge a dança do break. O
breaking é uma dança de resistência, alguns creditam alguns movimentos oriundos
de protestos à guerra do Vietnã, os movimentos “quebrados” simulavam soldados
feridos, outros acham que é apenas uma manifestação corporal, o fato é que o
breaking de sentimento de pertencimento a muitos jovens, os mesmos que
frequentavam violentas gangs de rua, as quais foram convertidas a crews de Hip
Hop, as diferenças entre esses jovens periféricos não seria mais resolvidas com
armas e violência e sim em rachas de break.
“Sai
da frente que hoje tô enfezado
O
som é pra mente, então não pense pelo
Rabo
Aqui,
o sobe e desce é do moinho pro flak
Erick
Jay nas Pick-up's é violência no Scratch”
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DJ Erick Jay |
O segundo verso trás uma bonita
homenagem a grandes nomes do nosso rap, a começar com o pioneiro Thaide que, em
1988 ao lado DJ Hum, lança a música “Corpo Fechado” no LP Hip Cultura de Rua,
do selo Eldorado, o qual ainda teve MC Jack e DJ Ninja e os grupos O Credo e
Código 13. “Corpo Fechado” abriu mente de muitos jovens, tocou nas rádios e foi
o primeiro rap que muitos ouviram, em uma época que o acesso a informação era
muito difícil. Thaide inspirou diversos artistas, que hoje são consolidados, a
fazer rap, entre eles Mano Brown (apesar de serem contemporâneos). Outro pioneiro
homenageado é Pepeu e seu grande clássico “Nomes de Meninas”. Pepeu é
considerado o primeiro MC a gravar um rap com o “Melô do Bastião”, ao lado de
Mike e DJ Bacana, antes de Pepeu até houve alguns experiências que flertaram
com o rap, mas não foram de fato feitas por MC’s, como o “Melô do Tagarela”, de
1980, feita por Miele em cima da base instrumental de Rapper’s Delight, do
Sugar Hill Gang. Ndee Naldinho, outro homenageado, estava na coletânea O Som
das Ruas, também de 1988, sob o nome de Ndee Rap, dupla formada por Naldinho e
Batista. Outro que estava na coletânea O Som das Ruas foi o grupo Metralhas,
com o “Rap da Abolição”, dupla formada pelos irmãos Lino Krizz e DJ Dri. Desse
modo, o Face da Morte passa o recado: “Então quando chegar no terreiro, respeite
os pioneiros, arquitetos do RAP!”
“Mentes
se abriram, Thaíde, Corpo Fechado
Pepeu
Levou no RAP, vários nomes rimados
Duck
Jam, Naldinho, Geração RAP
Rappin
Hood, Metralhas, MC Jack
DMN,
Racionais jamais a gente esquece
Então
quando chegar no terreiro,
respeite
os pioneiros, arquitetos do RAP (Salve!!)”
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Pioneiros, arquitetos do rap (salve!) |
Seguindo, os homenageados são os
vizinhos do Sistema Negro, grupo de Campinas, cidade ao lado de Hortolândia.
Quando o Face da Morte lança seu primeiro disco em 1995, Meu Respeito Eu Não Enrolo
Numa Seda, Kid Nice, membro do Sistema Negro, soma na coprodução do álbum. Na
frase: “noix mete Bronx”, uma referência ao icônico MT Bronks, de muito destaque
no início dos anos 90 e que participou dos encontros de breaking na rua 24 de
Maio e no Metrô São Bento. DJ Cuca,
outro pioneiro e lenda, é um arquiteto do nosso rap, responsável pela produção
de grandes hits, e trabalho com grandes nomes como RZO, Edi Rock, Pepeu e Face
da Morte. O Mestre Cuca também trabalho com nomes para além do rap, como: Kid
Abelha, Skank, J Quest, e Luiza Possi, e nomes internacionais como: Lauryn
Hill, Shakira, N Sync, Andreas Bocelli, Ricky Martin, Thalia e Jimmy Clif. Como
DJ, Cuca foi bicampeão do DMC e tricampeão Sul-Americano da Numark. Outra
referência é sobre a profissão de office boy, nos anos 80 esse era um oficio
muito comum dos jovens periféricos que trabalhavam no centro de São Paulo e por
circularem nessa região virão o surgimento do breaking da cidade através de
outra lenda: Nelson triunfo, que fazia sua roda, junto dos amigos da Funk &
Cia, no cruzamento das ruas Dom José de Barros com a 24 de Maio, nas costas do
Theatro Municipal, os office boys foram se aproximando das rodas e se
convertendo a b.boys e posteriormente e m MC’s. Athalyba é outro referenciado,
antes de montar o grupo A Firma que fez um enorme sucesso com as músicas “Politica”
e “Feminina”, junto do DJ Gilberto, DJ Cri-Cri, Guzula, Bafé (M.C.B), Adilsinho
e Marcelo Maita formaram o Região Abissal, grupo que em 1988 realizou o feito
de ser o primeiro a lançar um disco de rap, o Hip Rap Hop, já que antes havia sido
lançado apenas coletâneas, e o grupo consegue um disco todo só seu pela gravadora
Continental. Toda essa história é contada pelo Face da Morte nessas linhas, bem
como as storytelling, ou seja, as crônicas e contos que o rap sempre
apresentou, lembrando os escribas, os escrivães da antiguidade.
“Nosso Sistema
é Negro, noix mete Bronx
Nesse Beat do
Cuca, noix rima a vonts
Já fui office
boy na firma do Athalyba
No antigo
Egito, eu fui escriba”
O verso
seguinte novas referências a origem do rap, à capoeira que remete ao continente
africano e o blues, que traduzido para o português significa “alma”, nasceu
entre negros escravizados do Alabama, Mississipi, Louisiana e Georgia enquanto
trabalhavam nas plantações de algodão. O timbre o berimbau é do contrabaixo do
blues são similares, pois a música é ancestral e vêm da mesma fonte. O Face da
Morte cita duas localidades africanas Angola e a cidade sulafricana de Soweto, o primeiro é de onde veio
parte dos negros para o Brasil, os bantos, já Soweto também é referência para a
famosa casa de shows de mesmo nome e ícone da música negra nos anos 90 na
capital paulista, as festas aconteciam na região do bairro de Pinheiros, sempre
às quartas, quintas e domingos, dias totalmente dedicados a música negra, com rap,
reggae, R&B e flashback.
O rap atual, e
comumente feito pelos mais jovens, é recheado de técnicas e habilidades, como
as famigeradas “linhas de soco”, ou punch lines, que são as terminações de
linhas que tendem a promover impacto. No entanto, a técnica por si só não
garante um bom rap, já que de nada vale linhas isoladas se a construção total
da música não for incrível, não abusar do conteúdo, por isso o Face da Morte
tem sua na sua música o soul, a alma. Música que, assim como a linguagem em braile, tem que ser sentida
para ser interpretada. Referências também para o clássico do Face da Morte, “Bomba
H”, com colagens do solo de berimbau e da emblemática frase: “minha rima é Bomba
H, difícil de segurar”
"Sou capoeira,
sou blues, sou tambor sou terreiro
Sou Angola,
Soweto, da senzala herdeiro
Punch line pra
mim é só detalhe, conteúdo é o que vale
Eu tô nos seis continentes, traduzido em Braile".
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Flyer de festa da Soweto |
Depois do
refrão, o Face da Morte lembra um recente episódio do rap nacional que envolveu
a nova geração e a velha guarda, onde os mais jovens contava vantagem de fazer
dinheiro no rap e que artistas mais velhos estavam fodidos financeiramente.
Mauricio DTS foi um dos que se pronunciou sobre a falta de respeito dessa
geração, assim como Mano Fler e Pateta Código43, dois grandes representantes do
rap paranaense.
"Não sabe o que
fala, então, cala, não fala do RAP
Vou te deixar
mais quebrado que o Maurício DTS
Não FLER-TA
comigo que eu não sou Pateta
Sai dessa, seis
não são mente brilhante, isso é só óleo na testa"
O verso a
seguir é uma homenagem a um dos terrenos mais férteis do rap brasileiro: o
Distrito Federal, local de onde saíram boa parte das maiores letras do nosso
rap. São Citados Guid’Art 121, de Planaltina, Viela 17, da Ceilândia, o
professor GOG, que já viveu em Hortolândia e faz vários projetos com o Face da
Morte, inclusive a última linha: “Em Hortolândia tem Face, na Ceilândia tem X”
é uma referência a um trecho de “Brasília Periferia”, clássico do poeta do rap
nacional que diz: “Se o Riacho Tem GOG, Ceilândia Tem X”. X é o fundador do
grupo Câmbio Negro, uma das maiores pérolas do rap brasileiro e que teve
formação com banda, baixo, guitarra e bateria e conseguiu transitar pelo cenário
do punk e hardcore, muito prestigiado no DF. A citação ao DBS não pode passar
batida, o Gordão Chefe, rapper paulista de Carapicuíba e que saiu da Laje do
Helião, do RZO, se apoderou de um estilo único de fazer rap, original, raiz e
não Nutella, como cita o trecho:
“Vou chamar um
Guind’art te arrastar pra Viela
Aqui é RAP, é favela,
é raiz não Nutella
É uma Rima do
GOG, no estilão DBS
Em Hortolândia
tem Face, na Ceilândia tem X”
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GOG e X, dois expoentes do rap de Brasília |
Nos anos 90 e
2000, eram comuns a reunião entre amigos - como hoje ainda é, não fosse a
alegria roubada pelo genocida no poder – onde estralava nas caixas de som o rap
nacional contundente: Sabotage, RZO, SNJ, Consciência Humana, Xis (com us manos
pow, as mina pá!) e Expressão Ativa, só para citar alguns, eram (e ainda é!) a
trilha sonora de boas resenhas. Se esses nomes, se fossem jogadores de futebol,
seriam o Real Madrid do final dos anos 2000 que reuniu em seu plantel os
maiores craques do mundo e ficou conhecido como Galácticos. MP, rapper do grupo Expressão Ativa, é um dos
presentes no clipe e o Face da Morte os homenageia lembrando um dos clássicos
do grupo, a música “O Pacto”, sobre a triste realidade do consumo de crack,
tema comum nas letras dos citados acima, assim como o Império Z/O, outro referenciado,
um alerta para o nosso povo que hoje está esquecido e recebe mensagens
distorcidas.
"No churrasco é
Sabota, RZO, SNJ
Consciência
Humana, Prus Mano, pras Mana
Com MP fiz um
Pacto, meu Império intacto
Só tem rima de
impacto, geração de Galáctico."
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MP Empressão Ativa |
Seguindo, o
Face da Morte reforça a ancestralidade do rap que vem dos negros escravizados,
os Nagô, provindos da região do Sudão e que falavam iorubá, e os Bantô, ou
bantos, vindos da região de Moçambique, Congo e Angola. Banzô é uma palavra
utilizado por esses irmãos em situação de escravos para se referirem a saudade
ou falta. E seguindo ideia lançada pelo saudoso Marcelo Yuka (O Rappa e O F.UR.T.O.)
onde diz que “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, o Face da Morte
lembra que os descendes de africanos, os negros dos dias atuais, são os que têm
seu sangue escorrendo e já não formam poças e sim mares.
"Eu vi a dor dos
Nagô, o Banzô dos Bantô
Europeu
invadiu, sequestrou, lotou
O porão do
negreiro, milhões rumo ao cativeiro
Eu vi o sangue
dos preto, tingiu o Mar de Vermelho"
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Grupo de capoeira Inchuí |
Por fim, uma
ideia sobre a fase atual do rap com artistas de milhões de visualizações nos
streamings e milhões de seguidores nas redes sociais, mas com o conteúdo tão
profundo quanto um pires. O rap combativo, antifascista e de protesto e
denuncia é o que resgatou, salvou a vida de milhões, de respeito com o povo da periferia,
com visão de rua e que preza pela atitude feminina e sem vergonha dos castelos
de madeira, pois essa é a real história e é o que fica na história e vale muito
mais do que a fama o qualquer pseudo glória.
"Nós resgatamos
milhões, mas não contamos milhões
Não exploramos
mulheres, não alugamos mansões
Vivendo o que
pregamos, pregamos o nome na história
Face da Morte,
é o RAP antes da fama, sem glória".
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